arte na periferia: PRA LÁ DA PONTE... É NÓIS

18 de setembro de 2007

PRA LÁ DA PONTE... É NÓIS

Panorama - Arte na Periferia


Eu estava atrasado, saí correndo do ap que estava próximo ao Centro Cultural São Paulo, tinha acabado de tomar banho, então podia suar um pouco que o desodorante recém colocado agüentaria, passei pelo metrô São Joaquim e pensei, que falta me faz R$ 2,30, mas ainda dá tempo, andei, corri, andei, o fôlego me faltava, visualizei ao longe a estação da Liberdade, japoneses passavam por mim com seus ares simpáticos de estrangeiros bem acolhidos, coreanos jogavam os farelos do balcão no chão dos seus botecos e mendigos brasileiros me pediam clemência, dinheiro, putz, se tivesse dinheiro já tava lá, tô atrasado, pra que lado fica o centro? Entra a esquerda, corre, corre, corre, cheguei molhado no terminal Bandeira, atravessei, corri pro banheiro e quem encontro lá? O diretor e sua família indo assistir à estréia do documentário mais esperado do ano por nós “Panorama, Arte na Periferia”, Peu! faltam dez minutos, vamos! mas a criançada tava com fome, compra hot-dog prensado, rápido, rápido, subimos as escadas rolantes, passamos, saímos do Terminal, tem gente vendendo, tem gente vendendo, corre, sobe, atravessa a rua, Theatro Mvnicipal, tá certo, deixa, é pra lá, passa farol, cine privê, cadê as xoxotas? tem um borrão branco na frente, chegamos! Caramba, tá todo mundo aqui! Pra lá da ponte é nóis, e pra cá também!

Vai iniciar na hora? cadê? ninguém sabe! cadê o produtor? Gil? ninguém acha o Gil, porra Gil! isso é hora de sumir, tá todo mundo aqui!

Na portaria: “Olá, nós viemos assistir à estréia do Panorama – Arte na Periferia”, “Já tá rolando filme, ninguém pode entrar.”, “Como assim? tá aqui no horário!”, “Não, já tá fechado”, ninguém sabe de nada, entrei no banheiro, lavei o rosto suado, abotoei a camisa, “Boa tarde senhor, sou produtor do documentário que vai estrear agora e todos nós viemos da zona sul pra assistir”, “Mas não é mais permitida a entrada”, “Então, Senhor, por favor, permita que eu entre pra verificar se encontramos o Gil, pois o rádio e o celular estão desligados”, entra, sai, entra, sai, “Pessoal! organiza a fila que a gente vai entrar em silêncio pra não incomodar quem estiver lá dentro.”

Lá dentro: acaba o filme que tava passando e... não entra “Panorama, Arte na Periferia”, que tá acontecendo? procuro a entrada pra cabine de som, tá camuflada com a parede, subo umas escadinhas apertadas, maquinário de cinema, “Com licença, por gentileza, está havendo algum problema com o documentário “Panorama, Arte na Periferia?”, “Problema nenhum, ele vai passar às 18h”, “Não, ele vai passar agora!”, “Mas vai passar duas vezes?”, “Não sei, mas tá todo mundo agora pra assistir.”, “Mas não dá tempo de passar duas vezes”, “Claro que dá” responde outro técnico “o documentário tem 50 minutos”, “então tá!”, “Muito obrigado”.

Desço as escadas apertadas e sento nas poltronas confortáveis do Cine Olido, quantos filmes já passaram aqui? quantos pornôs? quanta porra nos acentos? lembrei da primeira vez que entrei lá, assim que a Secretara de Cultura fez o projeto de organizar a bagunça, encontramos uma película, pensei que era pornô mas era da Xuxa, começa o filme.

Me aperto contra a poltrona como se estivesse levantando vôo, mas era pra segurar meus olhos úmidos de um vexame maior, 50 minutos de gozo! porra Peu! nenhuma mulher fez isso comigo!

Eu entrei no Cine Olido UM e saí UM MILHÃO, já não estava sozinho, eu era tudo aquilo e mais, eu era mais, eu era tudo o que se acenava, eu era as mil variantes que variavam na minha frente, eu era do tamanho da tela do cinema e da profundidade da fotografia, eu deixei de ser cego e pude enxergar todos, num mesmo momento, num mesmo êxtase, num mesmo transe que só a arte pode nos levar, eu era um homem feliz por ser amigo íntimo e pessoal do Peu, por ter escutado ele tocar gaita na escola e tê-lo chamado pra tocar na banda, eu transbordava alegria por existir e por entender meu papel no mundo, eu deixava de ser uma pedra no meio do caminho e me tornava uma pedra que compõe um caminho, eu reativei todos os meus sonhos e disse pra mim “agora é nóis!”

Na saída os abraços os sorrisos as pessoas de verdade, materializadas como se tivessem saído da tela e agora me cumprimentassem, eu era mais feliz!

Eu e o Binho tínhamos um projeto pra tocar, o Mestiço Musicultural, então propus, daqui a duas semanas inauguramos nosso projeto com o lançamento do “Panorama- Arte na Periferia” como marco deste ano, como marco pra o lançamento do nosso projeto de um espaço Mestiço e Musicultural! Duas semanas, na pegada, de pau duro, vamos, rápido, panfleto, xerox, divulgação, liga pra lá, manda e-mail pra cá, chama o Sérgio, chama o Gaspar, tem que tá todo mundo! Preto Soul vai tocar, Michele é a Dj, que lindo, casal lindo! rápido, tudo rápido, Diane inventa uma mini pizza, Espírito de Zumbi vai dançar!

O dia: tá todo mundo lá, CineBecos organiza a projeção, o Binho joga uns pneus no chão e coloca umas tábuas em cima, caramba, nossos acentos tem até amortecedor! Vão chegando, um a um, subindo e ignorando as escadarias das Casas Bahia, tem livros na entrada, pode pegar, é pra ler!

Tá todo mundo aqui! Se explode uma bomba hoje aqui morre 90% dos artistas e produtores da Zona Sul de São Paulo, começa o filme, a tela meche um pouco com os ventiladores, mais uma vez 50 minutos de êxtase! protestos em grafite, balas de um cano de trompete, um castelo fantástico, Berinjela tocando Hermeto, Cooperifa, poema com P, sarau do Binho, Panelafro, tudo lindo! nosso sábio guru Jair dando a definição científica e incontestável do que é arte, Euller contextualizando o movimento cultural, Binho nos lembrando da cidade antes dela ser cidade, sim SOU POSSÍVEL, o poeta é um profeta? Sou possível! Sou possível! No sangue a arte bombando pros nervos alegria e contestação! Só queremos o Sol! somos periferia e temos Cinema! Temos reage e temos cor, e quem tem cor AGE! Entendemos a mensagem, estamos reagindo, agindo, trabalhando em cooperação, assim como nos indicou o “Panorama – Arte na Periferia”.

Sim, tomo aqui o “Panorama – Arte na Periferia” como marco 0 para todas as nossas ações em cooperação, a Caminhada pela América Latina, a I Semana de Arte Moderna da Periferia, as ações em conjunto e enquanto unidade. Como o raio laser, estamos organizados e mais fortes. Não afirmo que sem o Panorama não estivéssemos caminhando para tal, certamente esses sonhos e ações seriam realizados sem o Panorama, mas o Panorama foi o Vestido da Noiva deste casamento entre muitos, foi a aliança 24 kilatz, foram as flores e ornamentos desta lua de mel, da qual já começam a nascer muitos filhos e filhas, e, bastardos ou não, todos muito queridos!

Não me atenho aqui a destrinchar questões técnicas pois sou apenas um apreciador da sétima arte, mas posso colocar que eles (Peu, David, Anabela, Dani) fizeram milagre com uma mini dv e um orçamento que qualquer cineasta usa para pagar 15 dias de um câmera-men em movimento.

Panorama –Arte na Periferia foi e é um projeto visionário, autêntico e fundamentado e VIVA A ARTE NA PERIFERIA!!! É TUDO NOSSO!!!

Gunnar
(VARGAS / Gunnar é músico compositor popular)

6 comentários:

bicicloteca disse...

tudo isso tava lá, tá aqui, circulando por poros, por ruas e quebradas, um trabalho silencioso e detonante como todo movimento, sim Gunnar, vamos nos empaudurando com tudo isso, Valeu , binho

Anônimo disse...

O marco da periferia paulistana. Periferia de metrópole. Tão cinza, calada e cabotina. Não dá mais prá segurar, calar, abafar o grito guardado há tanto tempo.
Quanto mais tentam, mais produzimos. Que seja no escuro. Mas acertamos longe!
Não queremos mais ostentar (se um dia isso foi desejado). a questão é que as telas eletrônicas passivas estão sendo vistas de outra maneira. os atores sociais periféricos vêem de longe.
e como Milton Santos sempre disse, as minorias terão papel fundamental como atores ativos da mudança.

Paula Lima disse...

Gunnar parabéns teu texto tá lindo e muito bem escrito...espero mesmo que o filme decole!!
Parabéns a todos vocês pelas realizações quase impossíveis!!
Bj
Mik

Anônimo disse...

Meu irmão, meus olhos estão chovendo!! Você conseguiu neste texto fazer a tradução, a decofificação de sentimentos e emoções que habitam nossos corações, fazer parte, é isto, compartilhar, fazer junto, coletivamnte, saber-se inserido, inclusão, sair da posição de excluído para uma posição de garra, guerra, acreditar-se possível.
Acho que este movimento é uma das coisas mais bela que venho vivenciando nos últimos tempos, nela além do compartilhar sonhos, observamos nossas construções interiores e a construção de pessoas trocando o ter pelo ser, exercício espelhado nos terreiros de nossos quilombos ancestrais.
Todos nós, que estamos ligados a este movimento cultural da periferia, que acreditamos nestas construções nos sentimos comtemplados em sua fala. Parabéns, este texto ta do "caralho".
Beijo meu querido!
Diane

Ana Estrella Vargas disse...

Me é familiar (por demais!)... que delícia, que fantástico, que lindo!! dá vontade de chorar por todos os lados... posso ver e sentir cada detalhe contado!! Esse movimento todo me traz uma satisfação tão grande que chega angustía, que realmente não cabe dentro de mim. Arte que mexe, que transforma, que transborda, que chova até todo mundo molhar!!!
Obrigada Peu, obrigada Gunnar: vai ser lindo demais ter vcs na ESP este sábado, vcs são o nosso principal alimento: de vontade de ser, de vontade de ver, de vontade de saborear... de vontade de estar juntos, de vontade de viver pra valer!!
valeu! bjs-luz>>>ana estrella

Ralf R só-a-consciência-no-ato-salva! disse...

Agora estou lembrandO: ... o poema que termina com "ir até o Sol tornou-se luta" foi gestado AO MESMO TEMPO que esse rapaz Gunnar Vargas... e os dois "foram publicados" (vieram ao mundo) em dezembro de 1981...

O que eu ainda não sabia, naquela época, é que o estilo de luta a ser adotado seria... A CAPOEIRA, e então ir até o Sol tornou-se luta, mas a luta se tornou dança, ginga, arte, o grande poder Transforma-Dor... Melhor impossível! É ISSO AÍ, RAPAZIADA!!!