arte na periferia: CONTOS CELULARES

22 de março de 2008

CONTOS CELULARES

BAR ADENTRO - SÉRGIO VAZ

-Alô.
-Alô
-É você?
-Sim sou eu, é você poeta?
-Pode crer.
-Que bom que você ligou.
-Pois é, demorei um pouco, estava meio sem ter o que falar.
-Que tempos vivemos nós, falta palavra na boca dos poetas.
-Bom, falta as palavras certas.
-Então me diz as erradas, gosto mesmo de palavras tortas.
-Puxa, que coincidência, a última vez que nos falamos, também foi uma despedida.

-Faz parte. Lembra do poema do Neruda?:"...foi meu destino amar e despedir."

-Linda, andam dizendo por aí que você desistiu de nós.
-Não meu poeta, desisti de mim.
Uma dor do tamanho de uma agulha de costurar botões de camisa entra no meu coração.
-Desiste não. Tem muito de nós com você, se você desistir...
-Viver dói.
-Não viver também.
-Quero ver pra crer.
-Espera então.
-Tenho pressa.
-Puxa, logo você que tem os pés de boneca, com pressa?
-Enquanto a vida doía no silêncio dos teus olhos, eu aprendi a voar.
-me ensina voar, depois você vai.
-Não dá, voar leva muito tempo pra aprender.
-Você sabe voar e depois eu que sou o poeta?
-Os poetas que nos alugam as asas, sabia não?
-Dessa não.
-Poetas não sabem de nada.
-Sei fazer ovo cozido.
-ha, ha, ha, ha, ha, ha.
-ha, ha, ha, ha, ha, ha.
Faz tempo que a gente não ría juntos. Por isso, rimos mais um pouco.
-ha, ha, ha, ha.
-ha, ha, ha, ha.
Mais um pouco.
-ha, ha.
-ha, ha.
-Sabe de uma coisa poeta?
-Não.
-você é um palhaço.
-Obrigado, mas é você quem sabe rir como ninguém. Outra coisa, quando você for quem vai rir comigo?
-A vida.
-Mas você falou que a vida não tem graça.
-Falei que a minha não tem.
-Não é verdade, você sabe disso.
Silêncio. Silêncio. respiração.
-Poeta, sabe do que eu mais me lembro ao seu lado?
-O quê?
-Os bares.
-Quantos, hein?
-Nossa história tem gosto de cerveja...
-Gelada.
-...E de cigarro. Meu câncer.

-Não, teu escorpião.

-Então você vai mesmo?
-Sim, eu vou mesmo.
-Teus filhos já sabem?

-Desconfiam.

-E Carlos?

-Está tão fraco como eu.

-Os remédios?

-Chega.

-Estou com vontade de chorar.
-Não, não há mais porque chorar.
-Se pudesse, iria até aí de dar um beijo, um abraço, sei lá.
-É tarde, Londres faz muito frio.
-Então vai se foder.
-Vai você.
-Vamos juntos?
-Já te disse, é tarde.
-Estou começando a achar que é tarde mesmo.
-É o que eu estou tentando dizer.
-Queria te agradecer.
-Pelo quê?
-Pelo tempo, apesar de pouco. Por ter me amado. Por ter me deixado te amar.
-Um dia, numa outra hora, num outro lugar, quem sabe?
-Mas se já estamos aqui, o quê custa?
-Já te disse...
-Então até breve.
-Adeus.
-Beija os amigos por mim.
-Só os que perguntarem por você.
-Não seja egoísta.
-Então não vá.
-Adeus.
-Tchau.

A câmera se volta para Linda e vai com tudo sobre os seus olhos, mas ela a encara, e não chora. Segura o telefone e sorri para ele, o celular, depois o desliga, com um riso pequeno nos lábios. Está só no quarto. Carlos preferiu não ouvir a conversa dos dois pelo celular.

Do outro lado da linha o poeta chora e ri ao mesmo tempo. Suspira. Caminha lentamente pela calçada da praça.
No fundo do quarto enquanto a câmera ainda gira à procura de dramaticidade, o som de Cartola invade a cena: "ainda é cedo amor, mal começaste a conhecer a vida...".
Peu, do arte na periferia grita: Corta!
Todos se abraçam no set de filmagem.


Peu, o diretor, pega o celular e liga para a filha.
-Alô.
-Pai?
-Sou eu. Liguei para dizer que acabou.
-Não vejo a hora de ver.

-Em breve, nos cinemas.

Tentou ser engraçado.

-Pai.

-Sim?

-Doeu o filme?

-Não, dói a saudade.

-Mamãe iria gostar.

-Sua mãe não gostava dos meus filmes. Gostava de mim.

-Vem pra casa.

-Daqui a pouco.

-Beijo.

-Tchau lindinha.

Na tela aparece FIM.

Entre os caractéres aparece o agradecimento a Linda, mulher do Peu.

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