arte na periferia: Entrevista Newton Cannito para o site da AR

21 de abril de 2010

Entrevista Newton Cannito para o site da AR



Newton Cannito é um nome respeitado na televisão e no cinema do Brasil. Não só pelo seu trabalho como roteirista, mas também pela sua atuação em defesa da democratização dos processos de produção do audiovisual. Newton também ensina o ofício de roteiros e nessa entrevista revela a importância da formação cultural e da vivência real no processo criativo.

Patrícia Oriolo: Newton, antes demais nada gostaria que você falasse como foi a sua trajetória profissional.

Newton Cannito:
Vou pular o começo, de dono de boteco e outros bicos tupiniquins que foram importantes em minha formação humana. Depois fui professor de história. Depois crítico de cinema e televisão. Fui editor da revista Sinopse e colaborei para a Folha. Aí virei roteirista e professor.
Em roteiro fiz a terceira temporada do seriado “Cidade dos Homens”. Em cinema fiz o longa “Quanto Vale ou é por Quilo?”, de Sergio Bianchi. Ano passado fiz mais dois longas: “Um dia”, de Jefferson De; e “ O mistério da Estrada de Sintra”, de Jorge Paixão da Costa, uma co-produção Brasil Portugal. Ambos estão sendo filmados nesse momento e devem ser lançados em 2007. No momento estou escrevendo mais dois longas.

Patrícia Oriolo: Você tem um trabalho muito forte ligado à democratização da TV brasileira. Você sinceramente acha que um dia a TV no Brasil será democrática?

Newton Cannito:
Não existe esse tipo de extremo. Ser ou não ser democrática. É tudo questão de ser mais ou menos democrática. E tem que falar em audiovisual como um todo, não só televisão.
O audiovisual brasileiro hoje é muito pouco democrático. Muitos poucos produzem, a renda é muito concentrada. Observe que a democracia que eu falo é também democracia econômica, é distribuição de renda. Mas aconteceram coisas nos últimos anos que tornaram o audiovisual brasileiro um pouco mais democrático.
Estamos todos nós – diretores, produtores, roteiristas - lutando para avançar mais. Fora a parte de lei, acredito muito na iniciativa individual, no empreendedorismo de nossos realizadores. É isso que vai pressionar a legislação. Acho que cada produtor independente que consegue veicular seu produto, ajuda na democratização. Cada vídeo de celular veiculado ajuda na democratização. Mas a luta nunca termina. Não é igual a um filme que chega ao final feliz ou triste. É uma luta permanente.

Patrícia Oriolo: O que falta para a produção independente ganhar força?

Newton Cannito: Por parte do estado falta apoio financeiro e legislação. Apoio financeiro também a empresas, não apenas a produtos (filmes, séries, etc). Deveria existir uma linha de apoio do BNDES, à pequenas e médias e pequenas empresas produtoras de vídeo e televisão. As emissoras que existem hoje surgiram assim, é necessário ter apoio continuado aos novos empreendedores. Por parte dos produtores falta essa consciência de que a produção não pode ser tão individual, que tem que ser continuada e em série. Mas a nova geração de produtores já pensa assim. Isso nos dá esperança de um futuro mais democrático.

Patrícia Oriolo: Como você avalia a implantação da TV Digital no Brasil e como acha que será o papel do roteirista nesse novo cenário?

Newton Cannito: Temos uma oportunidade única de democratizar a televisão e abrir novos mercados. A discussão sobre os padrões é uma das discussões, a mais urgente, mas não é única.
Temos que nos preocupar com os padrões na medida em que a tecnologia acaba influindo nos modelos de negócios. Temos que priorizar modelos de negócio que abram espaço ao empreendedorismo. Tudo que eu disse acima, se relaciona com isso.
Quanto aos roteiristas é necessário, urgentemente pensarmos também em linguagens para essa nova mídia. Ela favorece a interatividade, os jogos e novos formatos. Temos que estudar isso urgente e aprender a ser criativo para essa nova mídia.

Patrícia Oriolo: Gostaria que você falasse sobre o IETV.

Newton Cannito: O IETV surgiu há cinco anos. Eu e Nelson Hoineff sentíamos falta de debates estéticos sobre a televisão. Fizemos encontros de televisão, realizamos anualmente o Seminário IETV Esso de Telejornalismo e no ano passado realizamos o I Festival Internacional de Televisão.
Acreditamos que é necessário conhecer tendências estéticas para recriar o audiovisual brasileiro. Isso passa pela pesquisa histórica e pelo acompanhamento da produção internacional. Mais sobre o IETV no site www.ietv.org.br

Patrícia Oriolo: Por que o livro “Manual do Roteiro” é o “Manuel” de todos os outros?

Newton Cannito: Porque não caga regras. O livro que eu escrevi junto com Leandro Saraiva não universaliza um único modelo de escrever roteiros. Mais do que regras, fazemos perguntas para o roteirista criador. Discutimos todos os tipos de linguagem, desde Vertov até Fernando Meirelles. Abrimos a mente do leitor, para ele criar o filme que queira, sem se prender a supostas regras universais.

Patrícia Oriolo: Você é um profissional que ensina o ofício de escrever roteiros para cinema e televisão. Qual é a sua principal preocupação na hora de ensinar?

Newton Cannito: Ter repertório estético é o primeiro passo. Cada criador tem que ter um banco de linguagens na sua mente. Minha preocupação é potencializar os talentos individuais. Há pessoas que tem mais talento para um tipo de filme do que para outro tipo. Há pessoas que são melhores para estrutura, outros melhores para diálogo. Cada aluno deve se descobrir, descobrir seu talento individual. É isso que me dá prazer em ensinar.

Patrícia Oriolo: Para muitos Syd Field tem uma “receita de bolo” que dificilmente é quebrada na narrativa cinematográfica. Como você estimula a criação além da “receita de bolo”?

Newton Cannito: Apresentando em aula vários tipos de linguagem e discutindo com os alunos as inúmeras possibilidades da criação audiovisual. Além disso, eu pessoalmente, gosto muito de pesquisa de campo. Acho que a criação se renova em contato com a realidade. Gosto de motivar os alunos a viverem de verdade e criarem a partir da vida. A primeira coisa que um artista deve ter é gosto pela vida, é amor por seus personagens.

Patrícia Oriolo: Como você identifica os novos roteiristas que estão surgindo e procurando cursos?

Newton Cannito: Tem muita gente boa, talentosa, que não tem oportunidade.

Patrícia Oriolo: Recentemente saiu um artigo num jornal americano dizendo que a moda agora era ser roteirista. Todo mundo estava escrevendo um roteiro... Todo mundo pode escrever um roteiro? O que é essencial para fazer a diferença?

Newton Cannito: Formação cultural em tudo. Um roteirista tem que ler muito e ver muitos filmes. Isso é o básico. O complemento é viver. O cara quem tem que ter vivencia real.

Patrícia Oriolo: Fale sobre a sua participação no documentário “Violência S.A”?

Newton Cannito: Eu escrevi e co-dirigi com Eduardo Benaim e Jorge Saad Jafet. É um Doctv, programa inovador promovido pelo MINC e TV Cultura. Fizemos o filme na época da campanha do referendum das armas. É sobre paulistas em pânico, que procuram soluções privadas (carros blindados, armas, e tudo mais) para se defenderem. Mostramos como as soluções privadas podem levar à catástrofes públicas. É um documentário de humor negro, tem um tom de filme de terror. O resto cada um deve opinar.

Patrícia Oriolo: Como é o processo de escrever para documentários?

Newton Cannito:
Você tem que ter uma boa pesquisa. Uma boa estratégia de abordagem da realidade, pensada antes para as filmagens (isso o manual do edital Doctv ensina muito bem). E o roteiro é feito só após o material gravado.
Mas para ficar bom, não pode gravar sem saber o que você quer. Tem que saber a estratégia de abordagem.

Patrícia Oriolo: Como foi a criação dos roteiros para a série “Cidade dos Homens”?

Newton Cannito: Foi uma experiência maravilhosa. Fiquei um tempo morando no Rio, junto com o diretor geral Paulo Morelli e Leandro Saraiva. Fiz grandes amigos nas favelas (ou comunidades) do Rio. Aprendi muito sobre como a vivencia real, alimenta a criação. É um trabalho de entrega pessoal, de conhecer o outro, de boa antropologia, antes de tudo.

Patrícia Oriolo: Fale sobre o livro com o roteiro do filme de João Batista Andrade “O Homem que virou suco”?

Newton Cannito: Tive por anos a mania de pesquisar cinema. Fiz curadoria da obra de Domingos Oliveira, Cacá Diegues, Antonio Calmon e João Batista de Andrade. No momento estou fazendo do Maurice Capovilla. Aprendi muito com cada um desses cineastas. Sou grande fã da obra de João Batista de Andrade e considero “O homem que virou suco” um dos melhores filmes da história do cinema brasileiro. Foi um prazer editar o livro. Além do roteiro publicamos inúmeras entrevistas e reproduzimos o processo de criação. Descobrimos até um cordel que João Batista fez anos antes, que inspirou o filme. Está tudo no livro. Aí dá para entender como surge um grande filme. Um longo processo de vivencia pessoal do diretor.

Patrícia Oriolo: Como foi a criação do roteiro “Acompanhantes”? Quantos tratamentos o texto teve?

Newton Cannito: “Acompanhantes” é minha primeira peça de teatro. É inteiramente baseada na vida de amigas minhas que vivem ganhando uns trocos, na mais antiga profissão do mundo. São meninas maravilhosas, adoro elas.
A peça vai estrear em agosto. Teremos Mel Lisboa e lançaremos a Bruna Surfistinha como atriz. Até agora foram 3 tratamentos, mas ainda vou mexer na filmagem. Comecei o roteiro do longa mas parei. Será bem diferente da peça. A peça são monólogos para o público. O longa será inspirado no filme “Domésticas”, obra do Fernando Meirelles, que adoro.

Patrícia Oriolo: Como nasceu a história do filme “Quanto vale ou é por quilo?”?

Newton Cannito: Com Sergio Bianchi aprendi a criar a partir de conceitos. Queríamos traduzir Machado de Assis para os dias de hoje. Partimos do conto “Pai contra Mãe” e fomos estudar. Fizemos pesquisa de campo em Organizações não governamentais e lemos muito. Eu e Eduardo Benaim, o outro roteirista, lemos muito sobre a sociedade brasileira, enfocando em como a escravidão continua nos dias de hoje. Lemos Roberto Schwarz, Vilma Areas, Ina Camargo Costa, Cristovão Buarque. Eles foram nossas fontes de inspiração.

Patrícia Oriolo: Você escreveu um roteiro inspirado na música Tropical Melancolia de Max de Castro. Como foi essa “adaptação”?

Newton Cannito: Você fala do “Um Dia”, do Jéferson De. Não foi inspirado diretamente na música de Max de Castro, aliás, uma música maravilhosa. Ela deu o clima do filme, mas não a história. A história foi inspirada em pessoas reais, em moradores do Capão Redondo. É um filme sobre os caminhos da juventude da periferia no mundo de hoje.

Patrícia Oriolo: Como você gostaria que fosse o cenário ideal do mercado de produção audiovisual brasileiro?

Newton Cannito: Voltamos às primeiras perguntas. Gostaria que fosse mais democrático. Eu teria mais coisas para assistir e mais empregos. Quero mais gente fazendo, pois cansei de ver os mesmos filmes.
Tem muitos lados do Brasil que não estão aparecendo na tela. Tem também que ser mais meritocrático. Fale-se o que quiser da televisão, da telenovela, mas ao menos ela é meritocrática. Só os grandes autores permanecem.
O cinema tem muita gente ruim que continua produzindo, isso é péssimo, é jogar fora o dinheiro público do contribuinte. Quem é ruim para ser diretor ou roteirista deverá achar outros caminhos, precisamos de muitas outras funções, tem lugar para todos.
Aí alguém vai dizer, mas como avaliar isso? É fácil. O sucesso de público é uma das medidas. O respaldo crítico outra. A capacidade de gerar polemicas outra. E devem existir outras, que elas surjam. Não existe um único modelo de medição do talento, mas é possível medir. O que não dá é para não medir e perpetuar a incompetência.

Patrícia Oriolo: Você acha que o roteirista é mais respeitado no mercado atualmente?

Newton Cannito: No mercado de televisão sim. No de cinema, não. Nos outros também não. Falam sempre que não há roteiristas. Não há porque não existe valoração do trabalho do roteirista. Nem valoração financeira nem artística. Não existe no cinema brasileiro o modelo do roteirista autor, que tem em outros países.
O roteirista de cinema é sempre um assistente do diretor. Bastam observar dois dados. Não existe filmes que partam do roteirista; eles sempre partem do diretor, o roteirista entra para ajudar. E os diretores sempre assinam o roteiro junto. Em muitos casos não escrevem uma linha e assinam. Assinam por coordenar o roteiro.
Isso é uma clara distorção. Coordenar o roteiro é tarefa do diretor, obviamente. Assim como é tarefa dele coordenar fotografia, direção de arte e interpretação de atores. Mas ele não assina fotografia e direção de arte. Mas assina roteiro. Isso é um exemplo da distorção. Não é só questão de prestígio. É salário.
Ao assinar eles dividem o cachê com os roteiristas. Ganhamos menos. Ou se começa a valorizar realmente os roteiristas no cinema brasileiro ou não teremos nunca bons roteiristas.

Patrícia Oriolo: Qual filme você gostaria de ter escrito e por quê?

Newton Cannito: Podem ser dois? Vou por dois tá? É o mínimo que consigo. “Brazil, o Filme”, de Terry Gillian. Por mostrar como o amor e o imaginário podem ser revolucionários. “Dr. Fantástico, ou como deixei de me preocupar e aprendi a amar a bomba”. Por conseguir fazer uma piada de humor negro sobre um tema contemporâneo, no caso, a Guerra Nuclear.
Garanto que essa piada conscientizou todos que assistiram para a gravidade do problema. Além de ser divertidíssima! Queria citar também “O filho da noiva” e “Eles não usam Black Tié”, mas ficaria muito grande. Queria colocar também um musical tipo French Cancan, do Renoir. Mas tudo bem, ah e um do Scolla... Ih, começou uma lista...



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