arte na periferia: CONTOS DE BAIRRO

5 de junho de 2008

CONTOS DE BAIRRO

Primeira parte do conto que vai virar filme...
de Huguera

I

Naquela noite estava se achando. Era a noite de estréia da sua camisa preta, tecido colado e transparente, que a costureira do bairro demorara quase um mês pra fazer. É verdade, estava magoado. Mas sabia melhor do que ninguém deixar as tristezas na ponta do salto, assim, pisava nelas. Seu peito andava num téc-téc todo esquisito. A mágoa sabia reconhecer, era sua velha companheira. Mas, quando pensava nele, havia algo ali dentro que nunca tinha sentido antes. Será que amava aquele filho-da-puta? - Delete, delete, delete, esquece isso, Bi!, falou pra si mesmo. Essa noite era pra ele, só pra ele. Estava aí. O que rolar, rolou.
¬- Bichas burras... nós somos duas antas! Fica aí, falando mais do que a Hebe e, depois, perde o ponto de descer do ônibus...agora vamos ter que subir a Consolação inteirinha pra chegar lá... ninguém merece!, reclamava Rebeca, nome de batismo, Reginaldo Cristiano de Freitas, mas que fazia questão que o amigo lhe chamasse assim, e ainda enchia o seu saco, depois de algumas cervejas, pra que também adotasse um nome de guerra: - Bi, fala sério, né, Gilson é o ó! Tanto nome lindo, glamouroso, mas não , amigo inseparável de loucuras

II

Era fácil. Subindo pelo telhado do açougue, sairiam nos fundos da loja de roupas. Daí, era só pular e forçar a portinha, fechada só com um frágil trinco de metal. Os quatro garotos faziam aquilo muito mais pra ter o que fazer à noite, do que pelo dinheiro. Roupas íntimas. Gordinho e Nenê se acabavam de rir com cuecas enfiadas na cabeça. Gilson, enchia um saco plástico preto com calcinhas e sutiãs; e sorria, feliz. A pinga que haviam tomado antes de entrar, pra espantar o frio e a fome e pra criar coragem, tornava a cena muito mais engraçada. Os três se divertiam naquele lugar proibido para eles durante o expediente. Gente suja, como eles, não podia entrar ali. Nikimba observava, de longe. Não podia se ocupar com aquelas criancices. As portas da loja. – Vamos sair fora, já deu... já deu!, ordenou o maior dos meninos. Uma madrugada inocente e silenciosa, dava guarida praqueles garotos carregando um saco preto. No comércio local daquele bairro afastado do centro, encontrar um carro de polícia era muito azar. Apressaram-se. - A arte do malandro é não dar sorte pro azar, dizia Nikimba. 13 anos de sabedoria.
Seguros em seu campinho-esconderijo-dormitório os meninos, meio bêbados ainda, divertiam-se em volta de uma fogueira agonizante. Vestiam pijamas, ceroulas e cuecas na cabeça. Gilson, que havia se afastado do grupo, volta meio cambaleante. Iluminado pela fraca luz, reaparece de sutiã e calcinha brancos. Uma anágua na cabeça. –Lá vem a noiva... todaaaa de braaanco...” Nikimba, se levanta e lhe dá um soco na cara, derrubando-o. – Você é bicha, caralho? Nenê e Gordinho que se preparavam para rir da noiva do campinho... assustaram-se e se fecharam. O menino se levanta rapidamente e vai se sentar num tijolinho, afastado do grupo. Nikimba vai se sentar num lugar escuro, de costas para os meninos. Gilson chora em silêncio. A cabeça baixa. Apenas o sussurro das brasas da fogueira se faz ouvir. Limpa o sangue do nariz e não consegue entender o porquê daquele soco. Nikimba não gostava dele? Não era com ele que fazia coisas à noite, depois que os outros dormiam? Um calor infernal toma conta do seu corpo. Parece que um rastilho de pólvora vinha da fogueira até o tijolo onde estava sentado. Abrasava por dentro. Não podia despejar toda sua raiva no Nikimba. Não no Nikimba... gostava dele! O cheiro de fumaça misturado com o de cola de sapateiro e pinga o enojara. Levanta-se sem olhar para ninguém. Agarra o saco preto, cheio de calcinhas e sutiãs e sai andando. A cabeça ainda rodava e fervia. Explicação não precisava. Gilson não voltaria mais ali...
As pessoas que entravam naquele ônibus, o primeiro da linha, madrugada alta, deparavam-se com um saco preto no meio do corredor. No banco ao lado, um monte de peças íntimas femininas forravam o banco. Peças novas, ainda com etiqueta. Perambulando pelo corredor, uma criança, moreninha, de cabelinho curto e aspecto frágil, confundia suas cabeças. Seria um menino ou uma menina aquela figura que desfilava pelo ônibus vestindo uma calcinha e um sutiã brancos, por cima da roupa? A criança, nitidamente embriagada, passeava pelo corredor do ônibus fazendo poses de modelo. Algumas pessoas preferiam fazer de conta que nada estava acontecendo por ali. Viravam o rosto. Quando Gilson percebia que alguém estava olhando, parava no meio, mãos na cintura, cabeça levemente inclinada. E sorria. Aquele sorriso bêbado dado por uma criança, fustigava os que o recebiam. Os passageiros mais engraçadinhos ou mais mal-intencionados – todos homens - gracejavam: - Olha que avião, na passarela! Parece a Luiza Brunet! Alguns riam. A criança ria grande e aumentava a dose de empolgação nos trejeitos. Já no final da “passarela”, uma senhora, de cabelos em coque, chamou Gilson para perto de si. ¬– Pelo amor de Deus, minha filha, pega suas coisas e vai pra casa! Num fica andando assim por aí, não! Tem muito animal por aí que pode fazer mal a você... O menino deu uma rodada, daquelas que as modelos dão no final da passarela, e, virando a cabeça para trás perguntou: - O que foi que a senhora disse, Dona?, e arrumou o sutiã. A mulher tentou se explicar: ¬¬- Você já tá ficando mocinha, minha filha, se ficar por aí sozinha, desse jeito que você ta, pode vir um homem mau e fazer sabe lá Deus o que, com você! Pega as suas coisas e vai pra casa, vai, minha filha? As mulheres que estavam no banco ao lado concordaram, balançando a cabeça e balbuciando alguma coisa. Gilson jogou a cabeça pra trás e deu uma sonora gargalhada. Pegou suas coisas, tirou a calcinha e o sutiã, e desceu; tão logo o ônibus parou em algum ponto. - Mocinha. Quer dizer que agora eu to ficando mocinha?, e riu.

III

O baixinho, da camisa sete passou voando, fazendo poeira ao seu lado: - Passa a bola, Gilson... passa a bola, Gilson! O companheiro, da camisa nove vermelha vinha desde o meio de campo driblando seus marcadores, e parecia nem ouvir o que o outro gritava. – Passa a bola, Gilson... passa a bola, caralho! Dentro da meia lua, o centro-avante moreno do time vermelho, baixou a cabeça e chutou. -Uuuuuuuuuh! foi o que se ouviu por todo o campo. A bola passara raspando no travessão da meta do outro time. A oportunidade de virar o jogo havia sido perdida ali.
Com o apito final do juiz, a torcida, que até então, lotara os barrancos do lado do campo, começou a se dispersar. Crianças, velhos, homens e mulheres. Gente muito boa e gente muito ruim. Os motores das motocicletas, que até então respeitaram a música do futebol, voltaram a berrar. Alguns ouviram tiros de comemoração. Aquele empate contra o time mais forte do festival, não era de todo ruim.
Gilson havia corrido para o vestiário para pegar as suas coisas tão logo o árbitro apontara para o meio de campo. Os seus companheiros, talvez com menos pressa, vinham conversando, ainda no calor do jogo. O camisa três lamentava: ¬- Se aquele último chute do Gilson tivesse entrado, já pensou? O baixinho da camisa sete, vermelho, aparentando estar mais irritado do que dentro de campo, vociferou: - Se aquele porra do Gilson tivesse soltado a bola, eu tinha guardado pelo menos um! e apressou o passo. – Valdinho, se você jogasse tanto quanto fala, teria feito pelo menos dois., disse o negro da camisa dez, capitão do time. – O cara me deu o passe pro primeiro gol; fez o segundo e você ainda quer cornetar o cara? Na porta da entrada do vestiário, uma casinha de tijolos à vista, Valdinho pára e meio de soslaio fala pro seu capitão: ¬- Agora você vai ficar defendendo o Gilson... dá o cu pra ele também, Di!” E só não entra com tudo no vestiário porque o camisa nove, já de mochila nas costas, estava de saída e bloqueara o seu acesso: “Qual é a sua, Marivaldo, seu bosta? Tá com saudades da surra que eu te dei quando a gente era criança?”, e permaneceu parado na porta. As caras brancas dos outros nove homens do time contrastaram com o vermelho de suas camisas. Valdinho, mais branco do que os outros, disse, não sem certa dificuldade: “Do que você tá falando?”.
- Ué! Num tá lembrado, não? Estranho, dizem que é o cara que apanha quem nunca esquece! Você num jogou porra nenhuma e ainda ta aí, falando bosta pelos cotovelos... Tá mesmo é querendo levar outro cacete meu... A “turma do deixa disso” interveio: - Esquece isso, Gilson, o Valdinho fala demais, às vezes! Mas o esquentado camisa sete do time vermelho nem ouviu e já emendou: - Quem gosta de levar cacete, pau, rola, aqui, é você, seu viado do caralho! Pra quê? A resposta veio na lata: - Sou viado, mas você num güenta... e vou acabar com a sua macheza é agora, seu filho d’uma puta! Aí ninguém conseguia ouvir mais nada, foi uma gritaria, um empurra-empurra, um montoeiro de homem de camisa vermelha pra conseguir segurar o Gilson. O capitão do time, o dez, que até então estivera perto do Valdinho, virou as costas, tão logo a baixaria começou, e se picou dali. Gilson preparou uma cabeçada com endereço tão certo, que a sorte do Marivaldo foi que o Tião Gordo, camisa quatro e o mais forte do time, conseguiu puxá-lo na hora em que a cabeçada foi dada... senão o time ia ficar desfalcado pro próximo jogo da final, com o ponta direita de nariz quebrado. No meio do qüiproquó, que já durara mais do que devia, chegou correndo o Seu Damião, que só jogava dominó, mas que era o torcedor número um e roupeiro do time, gritando com todo mundo: ¬-Cês tão louco, seus filho d’uma rapariga? Que é? Vocês querem se quebrar? Querem se matar? Então, no próximo final de semana num tem nem jogo, né? Já era o festival... A voz da razão acabou, na hora, com a confusão feita pelos ânimos exaltados. Todos caíram em si. Gilson e Marivaldo, inclusive. O amor àquela camisa vermelha era maior do que o ódio que um sentia pelo outro. Uns foram tirando o Valdinho de cena. Outros ficaram com o Gilson. Seu Damião, passou a mão na cabeça do camisa nove artilheiro e falou: -Vai pra casa tomar um banho, garoto, relaxa! Se o time num perdeu hoje foi por sua causa... vai lá, toma um banho e descansa, vai? Ainda com o coração acelerado, o moreno agradeceu, olhando pra baixo: -Brigado, Seu Damião, brigado! E saiu andando descendo a rua, caminho de casa.
Ao virar a esquina da rua onde morava, avistou Diego encostado num poste, o capitão do time, já de roupa trocada e banho tomado, parecia que o estava esperando. – Qualé, Di? Que que você quer?, inquiriu Gilson, parando em frente ao poste. Ainda olhava para baixo. Como o outro permaneceu calado, olhando-o, decidiu continuar a andar: - Porra, Di, o cara acabou com a minha raça, na frente do time inteiro, rolou o maior barraco lá, tinha uma pá de cara à minha volta, e você num fez merda nenhuma? Qual é, Di? Vai que cola um louco lá, que, só pra variar, num gosta de mim, se junta com o filho-da-puta do Marivaldo e decide me socar, ou me subir lá mesmo? Você num ia fazer nada, Di... Diego que vinha andando atrás dele, em silêncio, até então, murmurou um começo de frase, mas a decepção do outro só aumentou: -Você virou as costas e saiu andando, Di... que merda! Você me deixou lá, sozinho, no meio daquele puta barraco horroroso! A resposta de Diego veio quase sem voz: - Mas, precisava, Gilson?
- Precisava, ô, se precisava! E aí, parece que a indignação aumentou: - Num fode, Di, o cara fala mal de mim pelos cotovelos, acaba comigo, você num faz porra nenhuma e ainda me pergunta se eu precisava me defender? Qual é, Di? Se eu num me defendo quem é que vai me defender? Você? Que me deixou lá, sozinho? Que virou as costas pra mim? E ainda mais nervoso, parecendo não acreditar no que tinha ouvido: - Ái, meu Santo Amaro, só me faltava essa! Ou você preferia que eu num fizesse nada, o cara me esculacha depois do puta jogo que eu fiz e eu ainda tenho que dizer amém pra ele? Vai pra puta-que-o-pariu, Di!, gritou.
Diego seguia Gilson, com passos tímidos, meio de lado, os olhos percorrendo toda a vizinhança: - Num precisa gritar, Gilson, eu ia... nem terminou a frase, Gilson se virou e falando bem baixinho, quase sussurrando, falou: - Que é Di, tá com vergonha de mim? Então por que cargas d’água veio até aqui?, e esperou o contraditório do outro. O que não veio: - Ah! Você estava com vergonha, né? Ou era medo? Medo que eu me virasse no meio do barraco e chutasse o pau da barraca e contasse pra todo mundo que foi na minha cama que você passou a noite de ontem? Diego, estacou. Branco. Gilson, seguiu andando e nem se virou pra falar: - Sai fora, Di, eu não quero mais saber de você não... você me decepcionou demais hoje! Sai fora, vai!, e entrou em casa.

Um comentário:

Anônimo disse...

Huguêra, fenomenal, muito bom simples , claro e tão natural, lindo lindo, dá a idéia exata de cada situação a possivel ver as caras das personagens!!!!!

muito bom!!