Hospital da Gente, da trupe de Taboão, é brilhante radiografia do cotidiano nas bordas da metrópole
Beth Néspoli
Começa na Rua Santa Luzia, em Taboão da Serra, o espetáculo Hospital da Gente, mais especificamente diante do portão da sede do Grupo Clariô. É noite de sábado e a reportagem do Estado junta-se aos espectadores para acompanhar a criação dessa companhia que há algum tempo vem despertando atenção pela qualidade de seu trabalho, provocando a chamada propaganda boca a boca. Acostumados às sessões teatrais dos fins de semana, moradores já se colocam às varandas para ver o início da apresentação. Através da janela de uma das casas, no momento mesmo em que uma atriz começa sua cena é possível ver um homem secar a cabeça com uma toalha.
Assista a cenas da peça
Mas a atmosfera de precariedade característica das periferias urbanas se dissipa às primeiras palavras da atriz Martinha Soares. Sua atitude corporal, os gestos precisos e expressivos, a voz colocada num tom de voz audível sem perda de nuances e, sobretudo, a segurança que se apropria das palavras de Marcelino Freire, cujos contos são base da dramaturgia da montagem, logo dão ao espectador a certeza de que estará diante de um espetáculo profissional, termo usado aqui no sentido da elaboração cuidadosa, do burilamento necessário à boa arte. Martinha, assim mesmo no diminutivo, é uma das sete atrizes desse grupo dirigido por Mario Pazini que nasceu em 2002, ali mesmo em Taboão da Serra, e há quatro anos conseguiu abrir sua sede, alugando duas casinhas, mantida durante os primeiros três anos sem nenhum apoio financeiro, público ou privado.
Quando o portão se abre, o espectador - conduzido pela personagem do prólogo, uma mulher indignada por ter sido impedida de vender seu rim - se depara com uma cenografia impactante, feita não para olhar, mas para "estar". Em simbiose com as duas casas, construiu-se uma "ocupação" com madeira e centenas de elementos cênicos como varais de roupas, mobiliário e utensílios domésticos, reprodução artística da paisagem visual e sonora característica de uma favela, com seus becos, botecos e barracos. Dentro dessa cenografia-instalação, o público "vivencia" o cotidiano dos moradores.
Flagrantes da vida da periferia? Sim, mas numa abordagem original dessa temática cada vez mais presente em telas e palcos. E não é só uma qualidade "de origem", do lugar de onde se fala, de dentro para fora. Antes de mais nada há um desejo manifestado por esses artistas de entender e discutir a vida nas bordas da metrópole - sem drama. A ausência de autopiedade é elemento essencial na poética da trupe e se faz presente na encenação, na dramaturgia e, sobretudo, nas interpretações. Por exemplo, Naloana Lima, no papel da mulher que "dá" seus filhos paridos, não busca explorar a dor, mas a aguerrida firmeza de quem dela se defende, e assim revela o que a mulher nega. Mérito da direção, essa cena se estrutura numa discussão comum de vizinhas, o que retira dela a intenção de comover. Recurso que, com variantes, perpassa toda a encenação. Aparentemente, são recortes da vida. Na verdade, está-se diante de construção simbólica, da simplicidade fruto de consciente elaboração estética.
Mesmo quando a dor se faz presente, como na cena da prostituta cuja memória do pai que abusou dela na infância vem à tona pelos olhos azuis de um cliente idoso, a atriz Alaíssa Rodrigues consegue expressar sentimentos contraditórios sem cair na autopiedade. Há cenas densas, como a da mãe (Janaína Batuíra) em busca da filha raptada ou da mulher que se recusa a ir à passeata pela paz, uma bela interpretação de Nanura Costa. Há ainda "respiros", como na figura patética encarnada por Maíra Galvão, a dona do "boteco Fênix", que após levar uma surra do marido, compensa o presente árido relembrando (fantasiando?) sua beleza física no passado. A leveza chega em toques de humor, como faz Paloma Oliveira tanto no papel de uma bêbada ressentida, quanto na "evangélica" numa tragicômica discussão com a vizinha prostituta, que pede remédio para o filho.
Pelo menos um espectador soltou o riso na plateia, Gabriel Mota, de 6 anos. "A gente não tinha como deixá-lo", argumentou o casal Gisele e Eduardo Duwal. Na cena do lixão, Gabriel não se conteve: "Não come isso, é sujo, você vai pegar vírus."
Um conjunto de atrizes expressivas integra o Clariô. Naruna, uma das fundadoras, já foi "descoberta" pela televisão, vai estar no elenco da próxima novela da Globo, Tempos Modernos. Não por acaso, a força das mulheres de periferia foi o tema sobre o qual a montagem começou a ser construída, antes mesmo de "entrar em cena" o texto de Freire. "Tínhamos feito algumas peças, o grupo passou por transformações, algumas pessoas saíram, outras se integraram e, de repente, nos demos conta de que éramos sete mulheres e três homens", comenta Naruna. Os homens, no caso, são o ator Will Damas, responsável pela iluminação; o diretor Pazini e o cenógrafo Alexandre Costa, o João, como é chamado. Esse é especial. Assina a cenografia, opera luz e som. "E cozinha muito bem", falam as atrizes em coro. Do processo, o que João mais lembra é das enchentes. "A gente já tinha construído boa parte do cenário e perdeu tudo, tivemos de recomeçar." Não por acaso, a trupe avisa no site: "Se chover não tem peça, risco de enchente" (leia no quadro).
Um encontro feliz de Naruna com o compositor Chico César - cuja canção Beradêro está na trilha e inspirou o título do espetáculo - foi a ponte para conhecer Marcelino Freire. Assim surgiu o texto, tessitura de 12 contos extraídos de seus livros e um inédito, que embasaram as imagens já criadas. A montagem estreou em 2008, recebeu cinco indicações para o Prêmio da Cooperativa Paulista de Teatro e venceu em três categorias: grupo revelação, ocupação de Espaço e trabalho desenvolvido no interior ou litoral.
Até o final de 2008, custos do espaço e montagem sempre foram divididos pelos artistas do Clariô, que têm outras atividades. "O poder público local nunca apoiou. Felizmente temos ótimos vizinhos e apoio da comunidade", diz Pazini. Este ano, pela primeira vez, além de um edital de circulação, o Clariô ganhou o Prêmio Miriam Muniz, da Funarte. Entusiasmados, já preparam uma nova montagem. "Existe uma estética de periferia? O que é estar na borda? Se há margem, o que está no centro? Queremos discutir isso em cena", diz Naruna. Até lá, apresentam Hospital da Gente e abrem a casa para receber outros grupos, todo mês, para apresentações, encontros, debates.
Serviço:
Hospital da Gente. 90 min. 12 anos. 25 lug. Espaço Clariô. Rua Santa Luzia, 96. Reservas pelo tel. 9995-5416. Sábs., 21 h. R$ 10. Se chover, não haverá sessão
Assista a cenas da peça
Mas a atmosfera de precariedade característica das periferias urbanas se dissipa às primeiras palavras da atriz Martinha Soares. Sua atitude corporal, os gestos precisos e expressivos, a voz colocada num tom de voz audível sem perda de nuances e, sobretudo, a segurança que se apropria das palavras de Marcelino Freire, cujos contos são base da dramaturgia da montagem, logo dão ao espectador a certeza de que estará diante de um espetáculo profissional, termo usado aqui no sentido da elaboração cuidadosa, do burilamento necessário à boa arte. Martinha, assim mesmo no diminutivo, é uma das sete atrizes desse grupo dirigido por Mario Pazini que nasceu em 2002, ali mesmo em Taboão da Serra, e há quatro anos conseguiu abrir sua sede, alugando duas casinhas, mantida durante os primeiros três anos sem nenhum apoio financeiro, público ou privado.
Quando o portão se abre, o espectador - conduzido pela personagem do prólogo, uma mulher indignada por ter sido impedida de vender seu rim - se depara com uma cenografia impactante, feita não para olhar, mas para "estar". Em simbiose com as duas casas, construiu-se uma "ocupação" com madeira e centenas de elementos cênicos como varais de roupas, mobiliário e utensílios domésticos, reprodução artística da paisagem visual e sonora característica de uma favela, com seus becos, botecos e barracos. Dentro dessa cenografia-instalação, o público "vivencia" o cotidiano dos moradores.
Flagrantes da vida da periferia? Sim, mas numa abordagem original dessa temática cada vez mais presente em telas e palcos. E não é só uma qualidade "de origem", do lugar de onde se fala, de dentro para fora. Antes de mais nada há um desejo manifestado por esses artistas de entender e discutir a vida nas bordas da metrópole - sem drama. A ausência de autopiedade é elemento essencial na poética da trupe e se faz presente na encenação, na dramaturgia e, sobretudo, nas interpretações. Por exemplo, Naloana Lima, no papel da mulher que "dá" seus filhos paridos, não busca explorar a dor, mas a aguerrida firmeza de quem dela se defende, e assim revela o que a mulher nega. Mérito da direção, essa cena se estrutura numa discussão comum de vizinhas, o que retira dela a intenção de comover. Recurso que, com variantes, perpassa toda a encenação. Aparentemente, são recortes da vida. Na verdade, está-se diante de construção simbólica, da simplicidade fruto de consciente elaboração estética.
Mesmo quando a dor se faz presente, como na cena da prostituta cuja memória do pai que abusou dela na infância vem à tona pelos olhos azuis de um cliente idoso, a atriz Alaíssa Rodrigues consegue expressar sentimentos contraditórios sem cair na autopiedade. Há cenas densas, como a da mãe (Janaína Batuíra) em busca da filha raptada ou da mulher que se recusa a ir à passeata pela paz, uma bela interpretação de Nanura Costa. Há ainda "respiros", como na figura patética encarnada por Maíra Galvão, a dona do "boteco Fênix", que após levar uma surra do marido, compensa o presente árido relembrando (fantasiando?) sua beleza física no passado. A leveza chega em toques de humor, como faz Paloma Oliveira tanto no papel de uma bêbada ressentida, quanto na "evangélica" numa tragicômica discussão com a vizinha prostituta, que pede remédio para o filho.
Pelo menos um espectador soltou o riso na plateia, Gabriel Mota, de 6 anos. "A gente não tinha como deixá-lo", argumentou o casal Gisele e Eduardo Duwal. Na cena do lixão, Gabriel não se conteve: "Não come isso, é sujo, você vai pegar vírus."
Um conjunto de atrizes expressivas integra o Clariô. Naruna, uma das fundadoras, já foi "descoberta" pela televisão, vai estar no elenco da próxima novela da Globo, Tempos Modernos. Não por acaso, a força das mulheres de periferia foi o tema sobre o qual a montagem começou a ser construída, antes mesmo de "entrar em cena" o texto de Freire. "Tínhamos feito algumas peças, o grupo passou por transformações, algumas pessoas saíram, outras se integraram e, de repente, nos demos conta de que éramos sete mulheres e três homens", comenta Naruna. Os homens, no caso, são o ator Will Damas, responsável pela iluminação; o diretor Pazini e o cenógrafo Alexandre Costa, o João, como é chamado. Esse é especial. Assina a cenografia, opera luz e som. "E cozinha muito bem", falam as atrizes em coro. Do processo, o que João mais lembra é das enchentes. "A gente já tinha construído boa parte do cenário e perdeu tudo, tivemos de recomeçar." Não por acaso, a trupe avisa no site: "Se chover não tem peça, risco de enchente" (leia no quadro).
Um encontro feliz de Naruna com o compositor Chico César - cuja canção Beradêro está na trilha e inspirou o título do espetáculo - foi a ponte para conhecer Marcelino Freire. Assim surgiu o texto, tessitura de 12 contos extraídos de seus livros e um inédito, que embasaram as imagens já criadas. A montagem estreou em 2008, recebeu cinco indicações para o Prêmio da Cooperativa Paulista de Teatro e venceu em três categorias: grupo revelação, ocupação de Espaço e trabalho desenvolvido no interior ou litoral.
Até o final de 2008, custos do espaço e montagem sempre foram divididos pelos artistas do Clariô, que têm outras atividades. "O poder público local nunca apoiou. Felizmente temos ótimos vizinhos e apoio da comunidade", diz Pazini. Este ano, pela primeira vez, além de um edital de circulação, o Clariô ganhou o Prêmio Miriam Muniz, da Funarte. Entusiasmados, já preparam uma nova montagem. "Existe uma estética de periferia? O que é estar na borda? Se há margem, o que está no centro? Queremos discutir isso em cena", diz Naruna. Até lá, apresentam Hospital da Gente e abrem a casa para receber outros grupos, todo mês, para apresentações, encontros, debates.
Serviço:
Hospital da Gente. 90 min. 12 anos. 25 lug. Espaço Clariô. Rua Santa Luzia, 96. Reservas pelo tel. 9995-5416. Sábs., 21 h. R$ 10. Se chover, não haverá sessão
Um comentário:
Bem bacana esta dica. Quero assistir a este espetáculo, quem sabe no príximo sabado
gracias pela dica!!! bjssssss
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