Dia desses estava levando a Potyra no ambulatório, passei pelo córrego canalizado, pensei, “que favela du caralho”, as crianças brincavam de bola naquela que era quase uma rua do interior, onde não passa carro, apenas algumas bicicletas ou motos se aventuram pacientemente pelo que era um córrego sujo e fedido, olhei pra uma parede com um mosaico e lembrei que queria fazer algo parecido em minha casa. Da creche algumas crianças me olhavam com um certo ar de curiosidade, um pouco antes de chegar ao ambulatório vi aquela quadra esportiva e de novo pensei, “que favela du caralho”. Depois do dentista fui pro Terminal João Dias e ao terminar de subir aquelas escadas me deparei com um grafite que me impressionou muito não só por sua qualidade artística, mas pela sua atitude política e por sua função social.
Finalmente eu, um consumidor de cultura, re-descobria onde estava a biblioteca do Monte Azul, que pela minha ignorância ainda pensava que era no outro morro, lá perto do final da favela. Aquele grafite do Gente Muda, o grupo de grafite que mais respeito em São Paulo e, sem dúvida, um dos melhores do mundo, estava ali, me indicando onde era a Zumbiblioteca do Monte Azul, senti um arrepio pelo corpo e pensei “caralho, de novo a Monte Azul deu seus passos mais a frente do que se é esperado”, há tempos, quando a biblioteca era lá no meio do matagal eu dia pros amigos, “é, lá na favela tem algo muito improvável, tem uma biblioteca, é só entrar naquela viela que depois do mato tá lá, super lindinha, toda de madeira, parece até uma casa de campo”, fiquei feliz e orgulhoso ao sair em direção ao Terminal João Dias, queria dizer a todos o quanto eu era uma pessoa de sorte porque a 10 anos caí em São Paulo no melhor lugar que se pode cair, queria dizer pra todos o quanto foi fundamental ter um Centro Cultural na minha formação pessoal e artística, mas na minha timidez atroz apenas um sorriso era esboçado por trás do meu chapéu.
Ao chegar em casa tratei logo de contar a todos a novidade, de como era lindo e significante aquele grafite, um verdadeiro marco, uma institucionalização de um movimento maravilhoso que só tem aqui, Monte Azul recebia o Gente Muda que com toda sua maestria imprimiu alguns zumbis nas paredes da biblioteca, todos lendo, indicando o caminho para nós, os novos zumbis, a resistência, na nossa favela, nosso quilombo, onde as crianças são tratadas como crianças e serão certamente pessoas melhores. Gente Muda não nos indicava apenas o caminho da biblioteca, indicava a solução para o povo brasileiro, para o mundo, assim como a Monte Azul vem indicando a tantos anos.
A paulada e o nó na garganta recebi pouco tempo depois, ao saber que o menino que trabalhava na recepção da biblioteca foi demitido por permitir que o Gente Muda fizesse sua intervenção urbana, segurei meus olhos idiotas que queriam deixar escorrer minha dor, minha dor não era apenas de pensar que alguém neste momento está desempregado, talvez com dificuldades de pagar suas contas, comprar comida ou algo assim, mas o que me afligia era a malvadeza dos homens, a rasteira do pequeno poder, o castigo, a falta de visão dos que regem nossas vidas. Minha respiração ficou mais curta e lembrei da frase de algum filósofo que dizia que estamos entre a loucura e a insanidade. Que loucura! quanta insanidade! mas o que está acontecendo? meu sonho de um Brasil possível foi escorrendo no lugar das minhas lágrimas, de repente tudo deixou de fazer sentido, me encolhi como um negrinho que foi capturado nas redondezas da quilombola e chicoteado pra aprender a não querer fugir da senzala, e eu gritava por dentro ZUMBI! ZUMBI! mas meus gritos morriam nas paredes escuras da minha mente-prisão, deitei num canto do meu quarto e fumei alguns cigarros, saí um pouco do meu quarto e vi um redemoinho, pensei “lá está o Saci”. Alegre o Saci agitava algumas folhas do chão pro alto, do alto pro chão, ZUMBI! CADÊ ZUMBI! voltei pro quarto, liguei meu computador e digitei estas pequenas linhas como desabafo.
Não deixo de admirar todo o trabalho já realizado pela Monte Azul, mas agora, com um calo que espero poder contorná-lo, porque hoje já não sou tão cristão, e a cada tapa que levo não me sinto altruísta em oferecer a outra face pra porrada, mas tento mostrar ao opressor o quanto é desconfortável apanhar, e pra finalizar deixo um provérbio africano, berço da civilização e da humanidade “nunca é tarde pra voltar e pegar o que ficou pra trás”.
Eternamente grato por tudo o que fizeram por mim e por meus irmãos zumbis.
Gunnar Vargas
(VARGAS / Gunnar é músico, compositor e fomentador cultural, atualmente coordena o projeto Encontro de Compositores, realizado no Centro Cultural Monte Azul, toca nas bandas UMOJA e OS Mameluco)
Finalmente eu, um consumidor de cultura, re-descobria onde estava a biblioteca do Monte Azul, que pela minha ignorância ainda pensava que era no outro morro, lá perto do final da favela. Aquele grafite do Gente Muda, o grupo de grafite que mais respeito em São Paulo e, sem dúvida, um dos melhores do mundo, estava ali, me indicando onde era a Zumbiblioteca do Monte Azul, senti um arrepio pelo corpo e pensei “caralho, de novo a Monte Azul deu seus passos mais a frente do que se é esperado”, há tempos, quando a biblioteca era lá no meio do matagal eu dia pros amigos, “é, lá na favela tem algo muito improvável, tem uma biblioteca, é só entrar naquela viela que depois do mato tá lá, super lindinha, toda de madeira, parece até uma casa de campo”, fiquei feliz e orgulhoso ao sair em direção ao Terminal João Dias, queria dizer a todos o quanto eu era uma pessoa de sorte porque a 10 anos caí em São Paulo no melhor lugar que se pode cair, queria dizer pra todos o quanto foi fundamental ter um Centro Cultural na minha formação pessoal e artística, mas na minha timidez atroz apenas um sorriso era esboçado por trás do meu chapéu.
Ao chegar em casa tratei logo de contar a todos a novidade, de como era lindo e significante aquele grafite, um verdadeiro marco, uma institucionalização de um movimento maravilhoso que só tem aqui, Monte Azul recebia o Gente Muda que com toda sua maestria imprimiu alguns zumbis nas paredes da biblioteca, todos lendo, indicando o caminho para nós, os novos zumbis, a resistência, na nossa favela, nosso quilombo, onde as crianças são tratadas como crianças e serão certamente pessoas melhores. Gente Muda não nos indicava apenas o caminho da biblioteca, indicava a solução para o povo brasileiro, para o mundo, assim como a Monte Azul vem indicando a tantos anos.
A paulada e o nó na garganta recebi pouco tempo depois, ao saber que o menino que trabalhava na recepção da biblioteca foi demitido por permitir que o Gente Muda fizesse sua intervenção urbana, segurei meus olhos idiotas que queriam deixar escorrer minha dor, minha dor não era apenas de pensar que alguém neste momento está desempregado, talvez com dificuldades de pagar suas contas, comprar comida ou algo assim, mas o que me afligia era a malvadeza dos homens, a rasteira do pequeno poder, o castigo, a falta de visão dos que regem nossas vidas. Minha respiração ficou mais curta e lembrei da frase de algum filósofo que dizia que estamos entre a loucura e a insanidade. Que loucura! quanta insanidade! mas o que está acontecendo? meu sonho de um Brasil possível foi escorrendo no lugar das minhas lágrimas, de repente tudo deixou de fazer sentido, me encolhi como um negrinho que foi capturado nas redondezas da quilombola e chicoteado pra aprender a não querer fugir da senzala, e eu gritava por dentro ZUMBI! ZUMBI! mas meus gritos morriam nas paredes escuras da minha mente-prisão, deitei num canto do meu quarto e fumei alguns cigarros, saí um pouco do meu quarto e vi um redemoinho, pensei “lá está o Saci”. Alegre o Saci agitava algumas folhas do chão pro alto, do alto pro chão, ZUMBI! CADÊ ZUMBI! voltei pro quarto, liguei meu computador e digitei estas pequenas linhas como desabafo.
Não deixo de admirar todo o trabalho já realizado pela Monte Azul, mas agora, com um calo que espero poder contorná-lo, porque hoje já não sou tão cristão, e a cada tapa que levo não me sinto altruísta em oferecer a outra face pra porrada, mas tento mostrar ao opressor o quanto é desconfortável apanhar, e pra finalizar deixo um provérbio africano, berço da civilização e da humanidade “nunca é tarde pra voltar e pegar o que ficou pra trás”.
Eternamente grato por tudo o que fizeram por mim e por meus irmãos zumbis.
Gunnar Vargas
(VARGAS / Gunnar é músico, compositor e fomentador cultural, atualmente coordena o projeto Encontro de Compositores, realizado no Centro Cultural Monte Azul, toca nas bandas UMOJA e OS Mameluco)
Um comentário:
Foi com entusiamos que li o seu texto, Vargas. Sou professor de História em um colégio de Itapecerica da Serra e compartilho com você a mesma emoção quando encontro estampado nos muros do meu bairro os grafites do Gente Muda e do Cadu. Levei ao conhecimento do mantenedor do colégio o trabalho dos caras, ele ficou admirado pelo contexto social e gostaríamos muito de conhecê-los. Realizamos um trabalho no colégio que fixa-se em três pilares: o belo, o bom e o verdadeiro. Acreditamos que o trabalho desse pessoal, traduz o que acreditamos. Você poderia me colocar em contato com eles, pra um bate-papo? Ah, aproveita e me manda o endereço da biblioteca, fiquei afinzão de conhecê-la. Meu e-mail é carlao_assis@hotmail.com
Grande Abraço.
Carlos
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